Retrospectiva Técnica 2010 - Parte I

Por Hudson Martins

Na série "Retrospectiva Técnica 2010" o Blog Leitura de Jogo relembra as principais equipes do ano que se encerra, e analisa suas principais características, sobretudo através de aspectos técnicos e táticos. Neste primeiro post, o enfoque se dá nos clubes brasileiros com resultados mais expressivos neste ano: Fluminense, Internacional e Santos.

Fluminense - Campeão do Campeonato Brasileiro 2010
O título brasileiro do Fluminense começou a ser escrito em 01/11/2009, um domingo. Naquela data, no Mineirão, o Flu virou um jogo praticamente perdido contra o Cruzeiro (de 0 x 2 para 3 x 2), venceu uma partida fundamental na luta contra o rebaixamento, e arrancou para a fantástica sequência que seria construída pelo "time de guerreiros". Méritos não apenas para os jogadores, como também para o então técnico Cuca, que mesmo salvando o tricolor do mais do que provável rebaixamento, foi demitido da equipe das Laranjeiras em abril. A chegada do campeoníssimo Muricy Ramalho, e de alguns reforços importantes (ainda que estes tenham sido afetados por lesões), trouxeram a segurança e competência necessárias para a conquista de um título que exige altíssimo grau de competitividade. A bola - que comprovadamente pune - tornou-se parceira do Flu no Brasileirão, e lhe deu o tão aguardado título brasileiro após 26 anos de espera.

Desenho Tático


O 4-2-3-1 foi o esquema utilizado de maneira mais recorrente pelo Flu de Muricy Ramalho. Destaque para o apoio dos laterais (sobretudo Mariano, voando pela direita) e as belas atuações de Diguinho, marcando e saindo para o jogo com qualidade. Quem comandava a equipe era Dario Conca, que, fosse através de jogadas individuais, ou de passes precisos para os que o acompanhavam no ataque, mudou o panorama de diversas partidas. Uma das variações era o 3-4-1-2, em que Conca ganhava ainda mais autonomia no meio; os laterais apoiavam até com mais intensidade, e Washington ganhava um parceiro de ataque bem mais próximo. Deco e Fred, embora não apareçam nas representações acima, participaram de um certo número de partidas. Na grande maioria delas, o luso-brasileiro fazia dupla de armação com Conca num 4-2-2-2, ao passo que o camisa 9 tomava o lugar de Washington na frente.

Singularidades Tricolores

Dario Conca: 9 gols marcados, 17 assistências, e o merecido prêmio de melhor jogador do Brasileirão. Essas seriam informações mais do que suficientes para chancelar a excelente fase do meia argentino. Entretanto, há vários outros aspectos a serem destacados: a maturidade alcançada após 4 temporadas no Brasil (que lhe rendeu, inclusive, a faixa de capitão, ainda que se trate de um jogador reconhecidamente timido); o recurso técnico claramente superior à grande maioria dos jogadores da posição; a confiança do treinador, que há tempos declara publicamente a admiração pelo seu futebol; o custo-benefício repetidamente exaltado dentro das Laranjeiras (se tornando o único jogador de linha que iniciou as 38 partidas do Brasileirão)... São todos fatores que corroboram a importância de Conca para a equipe, e, em maior escala, para todo o futebol brasileiro.

Muricy Ramalho: definitivamente, Muricy não é comum. Quem que conduz seus clubes a 4 títulos brasileiros dos últimos 5 disputados tem algo de anormal. No caso de MR, o perfeccionismo, a busca pelo conhecimento futebolístico (que se reflete na assiduidade com a qual Muricy acompanha o futebol internacional, e até mesmo, busca adaptar alguns detalhes de outros esportes - como os sistemas defensivos da NBA - às equipes que dirige), a experiência neste tipo de competição, a rigidez (não confundir com desrespeito) com a qual conduz seus trabalhos, e a visão empreendedora para qualificar o espaço físico do clube, são apenas alguns dos exemplos que fazem de Muricy o profissional vencedor que é. Além disso, não há como ignorar o caráter do técnico tricolor, que, em função da palavra dada àqueles que confiaram no seu trabalho, acabou deixando o caminho da Seleção Brasileira aberto para Mano Menezes. Decisão controversa à época, mas que, hoje, é coberta de elogios. 

Legado Tricolor

Com estrutura deficitária, e método de gestão passível de questionamentos, o Fluminense traz consigo um legado estritamente técnico. De alto nível, é bem verdade, já que pavimentou o caminho do título nacional com nomes como Deco, Fred, Émerson, Mariano, Diguinho (jogando muito bem), e, evidentemente, Conca. Entretanto, é importante perceber que a situação financeira do Flu diverge da realidade dos grandes clubes brasileiros, e pode, a longo prazo, trapacear o próprio Fluminense. O investimento é capaz trazer resultados, sim, mas os reflexos surgem, invariavelmente. Cabe a Peter Siemsen tentar transformar um panorama enganoso num horizonte bem mais seguro do que o atual.

O Fluminense 2010, por Vitor Fontenele, colunista do Blog Leitura de Jogo:

"O Fluminense preferiu a continuidade do trabalho estupendo que Cuca havia desenvolvido em 2009 no Campeonato Carioca de 2010. Após os maus resultados, a instável diretoria tricolor substituiu Cuca pelo vitorioso Muricy Ramalho. Na Copa do Brasil, a eliminação para o Grêmio não tirou a confiança do time, que apesar de não ter começado tão forte o Brasileirão, engrenou às custas de Emerson e Conca, que desbancaram medalhões como Deco, Fred e Washington. Com 71 pontos e uma incrível regularidade, o Fluminense se sagraria, com muito mérito, Campeão Brasileiro em 2010. Destaque negativo apenas para os altos custos que o time teve, principalmente com folha salarial em 2010." 

Internacional - Campeão da Copa Libertadores da América 2010
A campanha do Internacional rumo ao bicampeonato continental foi marcada por alguns percalços. Houve certa dificuldade para que fosse garantida a vaga à segunda fase num grupo aparentemente tranquilo (ao lado de Deportivo Quito, Cerro e Emelec), e a segurança que se esperava após a contratação do técnico Jorge Fossati apareceu poucas vezes, em função dos tropeços no Gauchão, e da inconsistência na Libertadores. A classificação suada às semi-finais, após eliminar o Estudiantes, fez com que a diretoria colorada optasse pela aposta em Celso Roth, competente porém estereotipado. Com tempo para treinar durante a Copa do Mundo, e um elenco qualificado, Roth conseguiu fazer com que o Inter reconquistasse a América. Meses mais tarde, no Mundial de Clubes, o Internacional sofreria um duro golpe, inviabilizando a possibilidade de que este mesmo elenco conquistasse mais um título de expressão.

Desenho Tático


À esquerda, o 3-4-2-1 da estreia do Inter na Libertadores 2010, contra o Emelec, em casa. Naquela oportunidade, o colorado sofreu para vencer a fraca equipe equatoriana por 2 x 1, e dava mostras da equipe insegura que seria vista nos meses subsequentes. A mudança veio após a chegada de Celso Roth, que implantou um 4-2-3-1 extremamente compacto e insinuante. A movimentação de D'Alessandro e Taison pelos lados do campo garantia força ofensiva, e a proteção de Guinazu e Sandro oferecia consistência à equipe que garantiria o bi-campeonato continental.

Singularidades Coloradas

Giuliano: o excelente Mundial Sub-20 em 2009 já havia sido a prova da capacidade do meia colorado. Entretanto, ainda faltava algo mais contundente no elenco profissional para consolidá-lo como um jogador diferente. As atuações brilhantes contra Estudiantes, São Paulo e Chivas Guadalajara fizeram de Giuliano o grande talismã do título do Inter. A inexperiência não se sobrepôs ao seu talento, e o belíssimo desempenho em momentos decisivos ficará marcado nas lembranças do torcedor colorado.

Domínio Continental: desde 2006, o Inter sempre se faz presente nas principais competições continentais. Em 5 temporadas, foram 5 títulos internacionais (2 Libertadores, 1 Copa Sul-Americana, 1 Recopa Sul-Americana e 1 Copa Suruga), consolidando a força colorada fora do Brasil e trazendo ao torcedor e aos próprios jogadores um senso de confiança e altivez que faz diferença em momentos decisivos. Em 2010, contra alguns adversários de alto nível e tradição até mais extensa na Libertadores, o Inter não se intimidou, e garantiu os resultados de que precisava - tanto dentro, quanto fora de casa.

Legado Colorado

Não é necessário reforçar aspectos como a estrutura física, e a competência da diretoria de futebol do Internacional. Talvez seja mais interessante observar como o alarde nas contratações não é sinônimo de resultados em campo. Destaque do Inter nas fases finais da Libertadores, Giuliano é o tipo de aquisição que difere daquela aguardada pelo torcedor. Sem muitas expectativas (veio do Paraná, após bons jogos pela Série B, além de já ter histórico interessante nas Seleções Brasileiras de base), foi devidamente lapidado no Beira-Rio, e, tempos mais tarde, trouxe um acréscimo técnico fantástico ao Inter, se destacando num elenco que tinha nomes de destaque dentro do clube como Tinga, Rafael Sóbis, D'Alessandro e outros. O olhar para os jogadores mais jovens é fundamental, e deve ser feito na mesma medida em que se contrata nomes de maior peso. Quem faz trabalho sério nas categorias inferiores, e sabe observar jogadores recém-chegados aos profissionais - além de lançá-los no momento certo - acaba colhendo bons frutos.

O Internacional 2010, por Vitor Fontenele:

"O Internacional começou o ano com o vice-campeonato gaúcho, sendo eliminado no primeiro turno pelo Novo Hamburgo, e na final do campenoato, perdendo um GreNal. Na Libertadores, o Inter começou com Jorge Fossati no comando, que seria substituído por Celso Roth em uma - no mínimo controversa - negociação com o ex-treinador do Vasco. Campeão merecido, com vitórias sobre o São Paulo nas semis e sobre o Chivas Guadalajara na grande final. No Brasileirão, ficou a impressão de que o Inter "tirou o pé" devido às competições internacionais, mas mesmo assim, terminou o ano em 7º. No Mundial, a grande decepção: uma derrota para o fraco Mazembe United fez com que o time africano fosse o primeiro do continente a chegar a uma final de Mundial, e que o sonho do Bicampeonato colorado fosse diminuído a um opaco 3º lugar."

Santos - Campeão do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil 2010
No início do Paulistão, enquanto os rivais se movimentavam mais fortemente no mercado, o Santos agia de maneira tímida. A contratação de mais impacto até então era a de Dorival Júnior, vindo de belíssimo trabalho pelo Vasco na temporada anterior. Foi ele quem percebeu que o Santos não precisava de grandes investimentos, pois a matéria-prima para o sucesso em 2010 já estava na Vila Belmiro há tempos, embora eles não tivessem recebido os subsídios de que necessitavam para o salto mais importante da carreira. Com a chegada de Dorival, aquele grupo de garotos tornou-se outro remake dos "Meninos da Vila", agora na sua terceira versão, e com um estilo de jogo singular, garantiu os títulos disputados no primeiro semestre. A façanha poderia ser maior, não fossem as saídas do próprio técnico, além de Wesley, André, Robinho e a lesão de Paulo Henrique Ganso. Ainda assim, o Santos 2010 deixou marca relevante na história do futebol nacional.

Desenho Tático


As representações acima são necessárias, mas limitam muito a funcionalidade do Santos 2010. Wesley, Pará, Ganso, Robinho e Neymar podiam fazer inúmeras funções dentro de campo, gerando a possibilidade de variações táticas aliadas à enorme qualidade técnica. Com muita movimentação ofensiva, o Santos rendia tanto no 4-3-3 quanto no 4-4-2 em losango, envolvendo seus adversários com a mesma facilidade. Foi assim que construiu o futebol de melhor qualidade apresentado no Brasil nesta temporada. 


Singularidades Santistas

Neymar: embora não se recorde, Neymar esteve na insossa campanha santista no Brasileirão 2009, e pouco fez. Alternou alguns bons momentos com passagens pelo banco de reservas, e não se tornou unanimidade em momento algum, embora a expectativa com o garoto fosse a melhor possível. Com um novo sistema de jogo, o camisa 7 santista deslanchou, e arrancou para uma temporada espetacular. Embora seja figura importante no episódio da demissão de um dos profissionais mais importantes para o seu crescimento, também mostrou-se decisivo nos pontos altos do Santos na temporada, não se omitindo em nenhum momento, apesar da pouca idade. Se o Santos fez o que fez em 2010, deve boa parte a Neymar.

Paulo Henrique Ganso: de personalidade e estilo de jogo diferentes de Neymar, Ganso foi igualmente importante para o Santos, até ser parado pelas lesões no joelho esquerdo, em agosto. É outro jogador que se reinventou na atual temporada; já havia sido aproveitado no elenco profissional em várias outras oportunidades, mas jamais se firmara como agora. Embora tímido, mostrou personalidade forte em jogos decisivos, sobretudo na finalíssima do Paulistão, quando se recusou a deixar o gramado após ordem de Dorival Júnior, e mostrou que tinha razão ao ficar em campo, sendo importante para garantir o triunfo santista contra o Santo André.

Dorival Júnior: figura muito menos reconhecida do que deveria, foi peça imprescindível para o sucesso do Santos no primeiro semestre. Da equipe considerada titular nos dois títulos conquistados, 7 dos 11 jogadores já estavam no Santos na temporada anterior (Felipe, Pará, Edu Dracena, Léo, Ganso, Neymar e André); Wesley ainda era visto com desconfiança, embora tenha feito belíssima temporada pelo Atlético-PR em 2009, Arouca devia atuações consistentes há muito tempo, Durval vinha do rebaixado Sport (mas tinha a confiança de Dorival, após trabalharem em 2006), e Robinho estava em baixa no Manchester City. DJ reuniu um elenco tido como a quarta força do estado em janeiro, e transformou num dos grandes times da história do Santos, de altíssima qualidade técnica, movimentação tática insinuante, e resultados indiscutíveis. Grande trabalho de um dos maiores profissionais do país na área atualmente.

Legado Santista
 
Se a ideia aqui fosse cair no lugar comum, se poderia dizer que o Santos deixou como grande legado o fato de "jogar para frente", praticando um "futebol alegre", e mostrando que isso pode trazer resultados. Só que todos querem jogar em alto nível técnico; entretanto, poucos são capazes de fazê-lo, sobretudo quando se pensa que apenas a qualidade individual é capaz de ganhar campeonatos (o que até pode até ocorrer, embora não seja usual). Logo, os legados santistas são outros: o primeiro é a aposta em um técnico competente, de altíssimo conhecimento tanto do aspecto tático quanto do mercado de jogadores, o que fez com que atletas instaveis chegassem ao máximo de desempenho. Em segundo lugar, deve-se ressaltar a paciência do clube com determinados atletas, ainda que ela tenha sido fruto de coincidências em alguns casos (como o de Wesley, por exemplo, que ganhou maturidade em função dos vários empréstimos feitos pelo próprio Santos). Aqui, é fundamental compreender que há diferenças marcantes entre cada jogador, e que trabalhar esperando resultados imediatos não é benéfico, em hipótese alguma. Finalmente, outra questão pouco comentada: ao contrário de Corinthians e Vasco da Gama, as eleições que marcaram a saída de um presidente controverso do comando do clube ocorreram ao término - e não na metade - da temporada. Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro teve tempo para organizar o clube ao seu modo, e não precisou enfrentar situações desesperadoras ao término do ano, como ocorreu com os dois clubes supracitados. Sem um mínimo de organização política, não há como obter resultados consistentes. Uma das várias obviedades com as quais os clubes brasileiros insistem em teimar.

O Santos 2010, por Vitor Fontenele:

"O Santos virou a sensação do Brasil em 2010, que me desculpe o Fluminense. Apesar da modesta 8ª colocação no Brasileirão, o alvinegro praiano revelou praticamente um time inteiro de craques vindos, em sua maioria, da base santista, provando o valor que as categorias de base têm tanto para o futebol quanto para os cofres de um clube. Neymar, André, Ganso, Zé Eduardo e outros tantos foram responsáveis, bem mais que Robinho, por exemplo, pelos títulos Paulista e da Copa do Brasil. Os "Meninos da Vila" chamaram a atenção não só pelo desempenho dentro de campo e pela precoce convocação para a Seleção Nacional, mas também pelos problemas extracampo, que culminaram com a saída de Dorival. Fica a observação."

*Créditos ao Blog Olho Tático , de André Rocha (http://globoesporte.globo.com/platb/olhotatico), de informações fundamentais para que este post pudesse ser escrito.

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